Censura e “pressão ideológica” no Enem para que ele tenha “a cara do Governo”

Redação Litorânea

Trinta e sete servidores da autarquia responsável pelo exame pediram demissão a poucos dias da prova, mas presidente do órgão garante sua realização. Pouco mais de 3 milhões de candidatos confirmaram a inscrição, menor número desde 2005

Tentativas de interferência no conteúdo das provas do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) ―a principal porta de entrada para as universidades públicas brasileiras― estão por trás d adebandada de 37 servidores públicos do Inep na semana passada . Eles deixaram o instituto, ligado ao Ministério da Educação e responsável pelo exame, sob denúncias de assédio moral, acúmulo de trabalho e desmonte de diretorias. Segundo parte destes funcionários relatou no último domingo ao Fantástico, da TV Globo, houve tentativa de censura em questões que envolvem contextos sociopolítico e socioeconômico do Brasil em um movimento de “pressão ideológica” no processo de formulação da prova. Nesta segunda (15), o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) celebrou, durante entrevista à imprensa em Dubai, que as questões do Enem “começam agora a ter a cara do Governo”. “Ninguém precisa ficar preocupado, aquelas questões absurdas do passado que caíam tema de redação que não tinha nada a ver com nada. Realmente algo voltado para o aprendizado”, afirmou o presidente.

“Considero gravíssima essa situação”, diz Maria Inês Fini, responsável pela criação e implementação do Enem, em 1998. “A atitude dos servidores é desesperada. Imagino que seja a postura mais digna e corajosa, porque os conheço e não são pessoas levianas. Estão se colocando em risco para garantir uma política pública. Se chegaram a este nível, foi por necessidade, para ver se a sociedade acorda e salva o Inep”, defende. “Sem os servidores no cargo, não teremos um Enem tranquilo”, atesta, destacando que “o Enem define a vida dos estudantes, dá vagas em universidades e condições para conceder bolsas de estudos”.

Em nota, o Conselho Nacional de Secretários de Educação (Consed) disse acompanhar o caso das demissões “com muita preocupação” e pediu “maior atenção do MEC na condução das atividades do Inep.” A Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) também emitu nota, em que destaca as “consequências danosas” que a instabilidade no Inep {sigla de Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira) pode trazer para toda a sociedade. O caso já seria grave o bastante se fosse isolado, mas a verdade é que se soma a uma série de embates entre especialistas em educação, professores, servidores e membros do Governo de Jair Bolsonaro.

Nos últimos três anos, a política de educação bolsonarista passou pelas mãos de quatro ministros diferentes e envolveu poucos projetos, mas muitas críticas a universidades —chamadas de “balbúrdia” pelo ex-ministro Abraham Weintraub—, contingenciamento de recursos, corte de verbas para o MEC e a ausência de coordenação da crise da educação durante a pandemia. Sobre esse último ponto, houve até um veto presidencial à destinação de 3,5 bilhões de reais para um projeto que daria internet grátis a estudantes e professores —posteriormente derrubado pelo Congresso.

Antes mesmo de assumir a cadeira da presidência, Bolsonaro criticou a edição do Enem 2018 por considerar a prova contaminada por ideologia. Reclamou especialmente de uma questão que perguntava ao aluno o que torna o dialeto um elemento de patrimônio linguístico. O texto de apoio usava como exemplo o Pajubá, identificado como expressão cultural de gays e travestis. “Este tema da linguagem particular daquelas pessoas, o que temos a ver com isso, meu Deus do céu?”, vociferou. Bolsonaro prometeu rever a prova antes da aplicação, gerando incertezas sobre a segurança e a inviolabilidade das questões. Em 2019, seu primeiro ano no Palácio do Planalto, o Governo criou uma comissão para revisar as questões do Enem, a fim de filtrar “ideologias”. Na edição de 2020 sumiram as perguntas sobre o período da ditadura militar no Brasil, até então recorrentes na prova.

Em meio à batalha ideológica, estabeleceu-se uma dança das cadeiras que atingiu até a presidência da autarquia. Alexandre Ribeiro Lopes, presidente do Inep desde maio de 2019, foi exonerado em fevereiro deste ano após os erros da edição do Enem 2020, realizado em meio à pandemia. O exame havia sido adiado de novembro de 2020 para janeiro passado devido à alta de casos de coronavírus. Assumiu, então, o atual presidente da instituição, Danilo Dupas, que acumulava experiência de cinco anos de gestão em um fundo de pesquisa do Instituto Presbiteriano Mackenzie —o atual ministro da Educação, Milton Ribeiro, foi reitor em exercício e vice-reitor da Universidade Mackenzie, em São Paulo, antes de assumir o MEC.

Houve pouco tempo para preparar a prova deste ano. Com o adiamento do exame anterior, a prova de 2020 só terminou em março deste ano, com a divulgação das notas. Após relatos de que o Enem seria adiado novamente, para janeiro de 2022, o Governo se apressou em confirmar a edição para o fim deste mês. Abriu as inscrições, mas não deu isenção para que alunos carentes, que faltaram à prova de 2020 por medo da pandemia, pudessem continuar tendo acesso gratuito. Parlamentares e associações de estudantes pediram sem sucesso que o Governo revisse a posição. Em setembro, o Supremo Tribunal Federal decidiu por unanimidade que os alunos em situação de vulnerabilidade deveriam ter acesso gratuito à prova sem necessidade de justificar ausência, e um novo prazo de inscrição foi aberto.

Compartilhe este Artigo
Deixe um comentário

Deixe um comentário