A cerca de 2km do Congresso Nacional, uma criança de 5 anos presa em uma placa de trânsito por uma corda improvisada amarrada à calça faz da parede de ladrilhos brancos a lousa da “sala de aula”. A “escola” fica no Buraco do Tatu, no coração de Brasília e logo abaixo da Rodoviária do Plano Piloto. A mãe perambula entre os diversos veículos parados diante de um semáforo pedindo qualquer auxílio financeiro. Nas mãos, carrega um cartaz escrito: “Me ajuda comprando pipoca. Tenho filha e estou passando dificuldades. Aceito doações, comidas e roupas”.
A imagem choca motoristas que passam pelo local, mas a mulher, garante não ser um caso de maus-tratos. “Viemos de Goiânia para fazer o tratamento do rim da minha filha em Brasília. Somos só eu, meu marido e ela. Não consigo emprego e nem uma creche especial que cuide dela, mas, mesmo assim, ela está na escola. Hoje, no entanto, não teve aula e precisei trazê-la comigo, pois o meu marido está trabalhando”, desabafa a mãe.
A mulher explicou os motivos de deixar a filha presa à placa de sinalização. “Para que ninguém a roube de mim e para impedi-la de atravessar a rua quando eu me virar. Minha filha é tudo para mim, não me perdoaria se algo acontecesse com ela”, disse ela, que não perde contato visual com a garotinha enquanto tenta vender pipoca no trânsito.
Ela ponderou não ser sempre que leva a filha para a área central da cidade. “Só quando ela não tem aula, porque fico sem escolha”. Segundo a mãe, que não tem familiares no DF, “esse é o único jeito de terem o que comer” em casa.
“A polícia já veio aqui falar comigo e perguntar o motivo de eu colocá-la assim. Expliquei que era para ela não ser atropelada e para ninguém pegá-la de mim. Dessa forma, consigo vê-la e correr para ajudá-la”, revelou.
“Eles entenderam. Viram que a minha filha é bem cuidada. Estou aqui batalhando por ela. Para que a dificuldade que estamos passando não piore. Não tenho ninguém para deixar a minha filha, o meu marido trabalha também”, completa.
Agasalhada e com uma caixinha de suco ao lado, a pequena desenha a família e um animal de estimação na parede do viaduto do Buraco do Tatu. Extrovertida, a garotinha afirmou que ama desenhar. “Quando eu preciso vir com a mamãe, fico brincando com os meus brinquedos e desenhando. Mas eu gosto mesmo é de desenhar bonequinhos e princesas. Passa o tempo rapidinho e, aí, a gente vai embora”, conta.
De acordo com a mãe, desde que chegou ao Distrito Federal, ela tenta conseguir acesso a algum benefício do governo. Contudo, nunca foi comtemplada. Em meio ao desespero, passou a vender guloseimas na rua. Segundo a vendedora, quando a filha está com ela, ambas ficam durante a manhã nos sinais. Logo que o tempo começa a esquentar, no entanto, elas juntam os objetos pessoais e vão embora para casa.
“Ela trata o rim. Só tem um. Esse é um dos outros motivos para estarmos aqui. As coisas realmente não estão fáceis. Não temos muitas opções. Então, quando ela vem comigo, trago tudo o que ela precisa. Na sacola tem água, suco, comida e o banheiro da rodoviária fica logo ali. Não tem vaga em creche com tempo integral. Então, ela segue na escolinha, que vira e mexe não tem aula”, detalhou.
De dentro do ônibus, o analista de comunicação Israel Antonio Manoel Pereira, 40 anos, registrou a cena da criança amarrada. Segundo ele, a situação o toca profundamente e escancara ainda mais a desigualdade do país.
“O ônibus parou no semáforo, olhei para o lado e me deparei com a situação. A primeira coisa que pensei foi tirar uma foto para ajudar a mãe a conseguir emprego ou pelo menos doações. A cena me fez pensar nas minhas filhas e na dificuldade que as mulheres têm de acessar o mercado de trabalho depois da maternidade. Pensei também no medo que essa mãe tem de sua filha sofrer um acidente ou ser roubada. A criança está bem cuidada, agasalhada e tem até um tapetinho para não se sujar”, relatou Israel.
Outra pessoa, no entanto, que não quis se identificar, declarou que a situação é absurda e que não pode continuar. “Não imagino o que essa mulher passa com a criança, mas tenho certeza de que isso não está certo”, avaliou.
A conselheira tutelar Thelma Mello, da Asa Sul, informou que até o momento não houve denúncia sobre o caso, mas disse que pretende apurar.
Segundo ela, são vários os problemas que levam a essa situação. “O DF tem um déficit enorme de creches públicas e a maioria das mães de baixa renda são mães solo e não conseguem pagar a creche particular. Em muitos casos, são famílias do Entorno que chegam ao DF para conseguir dinheiro e sobreviver. As pessoas estão passando fome e os benefícios e cestas da assistência social demoram muito”, comentou.
“É assim: o estado viola o direito fundamental da criança à educação, alimentação e moradia e a família acaba violando também por desconhecimento e desespero para sobreviver”, complementou Thelma.
Sobre a queixa da mãe de falta de creche em tempo integral para deixar a filha, a Secretaria de Educação respondeu que “o caso específico requer um tempo um pouco maior para a área técnica poder checar a situação da criança”.